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Escândalo (1950) - Crítica

Lançado em 1950 o filme ficou a sombra, já que em tal ano o diretor Kurosawa rompeu as barreiras geográficas de seu país para ganhar o mundo...

Lançado em 1950 o filme ficou a sombra, já que em tal ano o diretor Kurosawa rompeu as barreiras geográficas de seu país para ganhar o mundo com Rashomon. No entanto Escândalo é uma agradável surpresa. Sabe aqueles filmes com uma temática hoje bem comum, tratado com desvelo, mas que nos traz certas particularidades, que nos permite ver como um artista sensível deixa o sentir sobrepujar o racional? O filme é bem isso. De certa forma flerta com o cinema de Capra, sem que tal descaracterize a sua filmografia.

“1950. Estamos em Tóquio.  Fotógrafos de um jornal de fuxicos (Amour) que pairavam por lá, como abutres atrás de carniça, surpreendem a grande vedete da canção japonesa discutindo futilidades com o pintor Ichiro Aoye, no balcão de seu quarto em um discreto hotel nas montanhas. A foto dá a ideia de que haveria um affaire entre os dois jovens artistas. Ao se ver no centro de uma manchete, o furioso Aoye esbofeteia o diretor do jornal, antes de procurar o caminho dos tribunais...”
Que a época moderna roubou das velhas fuxiqueiras o ofício de espalhar mentiras e calúnias é algo já sabido. O privado cada dia mais desaparece. Tudo se torna público em uma velocidade alarmante. Kurosawa aqui nos mostra o fenômeno dos papparazi em terras orientais. Os amores escondidos de uma cantora de reputação virginal e um jovem pintor motociclista. A reputação fica em segundo plano, quando surge os interesses monetários. Não se importa que tal seja calúnia ou não. O importante é manter o interesse de pessoas simples que buscam escapar de um cotidiano sem sabor, colocando-os como observadores importantes dentro de um cotidiano que não lhes pertence. O ambiente em que andam os protagonistas não sugere glamour. É um país ainda devastado pelo conflito mundial. As casas são simples, existem poucos veículos nas ruas, e Kurosawa insere a história dentro de seu país, sem o querer mostrar diferente da realidade. Não se trata de um filme de fuga.
Quão prazeroso me é adentrar nesse mundo particular de seu diretor. Os diálogos são construídos daquela forma de seus filmes mais conhecidos. Alguns sentirão falta de um algo inexplicável, talvez uma maior profundeza ao tratar dos temas. Parece-me que seu diretor ficou cativado pelo desenrolar da história e preferiu observar o ato de criação, numa posição de voyeur. O filme muda de rumo de repente. O que era para ser a história sobre dois artistas caluniados se transforma subitamente no resgate de uma alma.
Necessitado de um advogado que o representasse nos tribunais, o pintor se depara com um homem de aparência fraca, presa fácil da corrupção e de comportamento desagradável. Apesar disso o pintor não o rechaça. Busca conhecer o homem e vai visitar sua família e escritório. Quando adentra em seu lar... meu Deus, que foi aquilo? Uma jovem moça acamada e sorridente o atende. Ele a descobre tuberculosa faz anos. E ela lhe mostra a arte, ou melhor um olhar sobre o ser humano, que esse pintor nunca conseguiu captar. E ele claudica numa possível ojeriza. E mesmo que tudo aponte o contrário (a visita ao escritório de advocacia e sua capitulação é um achado de gênio) ele o constitui seu representante.
Daí transponho as palavras de seu próprio diretor para descrever o rumo que tomará o filme:
“Eu me deixei seduzir pelo personagem do advogado. Eu tinha consciência de que não devia seguir esse caminho, mas não consegui refrear meu desejo. Alguns personagens parecem adquirir uma vida autônoma, como se nós não fossemos seu criador. O filme se encaminhou numa direção bem diferente da prevista inicialmente. Mais tarde eu me lembrei que outrora eu efetivamente já havia encontrado um personagem similar. Eu até hoje não sei o motivo que ele retornou ao meu espírito quando da preparação do filme. A memória as vezes nos prega de situações bem estranhas”.
Takashi Shimura não parece bem a vontade nesse papel. Não que esteja mal, mas parece que não se agradou de seu desempenho. Eu cá por mim esqueço-me facilmente desse porém e de outros probleminhas da narrativa. Opto por olhar tudo através dos olhos da jovem acamada e do pintor que busca captar aquela forma de olhar para seu engrandecimento enquanto artista e ser humano. Essa obra de Kurosawa é um testemunho vivo de que todos podemos ser laçados pela poesia. Aqui a razão deu lugar a ela. E o resultado é gratificante.

Escrito por Conde Fouá Anderaos

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